Inês Vitorino, professora da pós-graduação de Comunicação Social da UFC, vê no politicamente correto um código de respeito e tolerância imprescindível, mas também acredita que as opiniões diferentes, e por vezes politicamente incorretas, enriquecem a discussão e ajudam a construir um respeito mais sólido na sociedade
Inês Vitorino acredita que o debate estimula as transformações sociais (DIVULGAÇÃO)
Ser politicamente correto ganhou conotação de chatice em alguns círculos. Para detonar o monitoramento dos movimentos sociais, argumenta-se o “sagrado” direito à liberdade de expressão, mas a professora Inês Vitorino derruba de primeira essa defesa. “Quem disse que o sujeito não pode dizer o que pensa? Só não pode nos casos em que já é lei, aí a liberdade de expressão não pode ser maior, mas no geral, as pessoas podem dizer o que pensam desde que estejam dispostas a ouvir o que os movimentos têm a dizer sobre isso”.
Para ela, e para a maioria dos sociólogos e ativistas ouvidos neste caderno (com exceção dos articulistas), o politicamente correto é o avanço do respeito aos grupos e indivíduos em suas singularidades, portanto, só tem efeitos positivos. Mas a professora da pós-graduação em Comunicação do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (UFC) defende a pluralidade dos discursos. Do conflito, surge o debate e com o debate, se avança. “O mais importante é que a discussão está acontecendo. Isso é parte de um processo permanente e os ganhos são muitos”, acredita Inês. (Mariana Toniatti)
O POVO - O que quer dizer o termo politicamente correto? Ele tem uma conotação negativa ou positiva?
Inês Vitorino - O termo vai classificar um conjunto de expressões, posturas e simbologias que tratam indivíduos e grupos sociais com respeito e tolerância. Então o que seria o politicamente incorreto? Seria quando esses mesmos termos desrespeitam algum indivíduo ou grupo. Avaliar se é positivo ou não cabe à sociedade. Que valores, elementos culturais e posturas ela deve ter para assegurar o respeito a todos os seus cidadãos? Você não vai encontrar uma visão unânime se é positivo ou não porque as pessoas pensam diferentemente.
OP - Exigir o uso de determinadas expressões mais corretas e o respeito às diferenças é um sinal claro de evolução na sociedade. Essa patrulha maior nesse momento, a censura, é parte de uma fase de transição? Isso vai ser introjetado aos poucos?
Inês - Quero fazer dois comentários sobre dois termos que você usou. Primeiro, patrulha. Quem trabalha com análise do discurso sabe que esse é um termo negativo para tratar das ações que procuram a proteção legítima dos grupos. O outro termo é censura. Censura é controle prévio seja feito pelo estado, pelas indústrias de comunicação ou pelas instituições econômicas. O que significa, baseado no autor Pierre Bourdier, que a censura é feita todos os dias em todos os jornais do mundo, porque em todos, guardadas as singularidades, tem informação que não vai a público porque contraria anunciante. Nesses casos, as pessoas não falam em censura, mas muito facilmente se chama de censura a manifestação dos outros grupos sociais, só ocorre censura nesses casos. No episódio do Ed Mota (que falou mal das mulheres e disse que o sul do Brasil é que tem dignidade) e noutros que você comenta, não identifiquei reação de censura. No momento em que me posiciono na esfera pública, na televisão, no Congresso, nas redes sociais, e me expresso tenho que estar disposto a ouvir quem vai se contrapor, tenho que arcar com as consequências. Quanto mais a sociedade avança no processo, mais avançamos na construção de termos legítimos, consensualmente aceitos. Esse é um processo. Estamos numa transição? É algo que vai se consolidar? Enquanto houver, e acredito que sempre haverá, grupos sociais diferentes, visões de mundo diferentes e classes sociais, as diferenças se reproduzem na disputa simbólica. Esse é um processo, na minha opinião, permanente. Mas vai trazendo novas questões e algumas são consolidadas. Na Europa, determinadas atribuições são inaceitáveis. Referências pejorativas à mulher têm uma cobrança muito forte. Essas discussões fazem com que as pessoas pensem melhor na forma de tratar e pensar o outro. Quanto mais respeitosa for a sociedade em relação à diversidade dos seus cidadãos, indivíduos e grupos – e no caso do Brasil, é muito plural –, mais esse processo vai sendo fortalecido.
OP - O que você vê já consolidado?
Inês – Um exemplo é como a questão do racismo é tratada. Hoje é crime. Significa que acabou o racismo? Não. Significa que a sociedade compreendeu que a postura racista e de desrespeito pode ser classificada como crime. Não é mais uma questão de liberdade de expressão, é desrespeito à lei. A liberdade de expressão não pode estar acima, do mesmo jeito que não posso ficar impune se roubar ou matar alguém. Vou sofrer as consequências do que estou falando. No Brasil, a gente avança em algumas áreas que acabam servindo de estimulo para outras áreas.
OP – O politicamente correto pode camuflar ainda mais os preconceitos do brasileiro que já são meio escondidos? Eu adoto um discurso porque sei que é o que esperam, mas na prática, tenho outra postura?
Inês - É um processo. Quando dei o exemplo da lei, é um exemplo de amadurecimento, mas não significa que seja regra geral no imaginário. Existe racismo, mas ter prática racista é crime. É o papel da política pública. Tem que pensar que é muito difícil que a lei esteja na frente dos processos. Os movimentos sociais colocam em discussão e fazem com que as pessoas pensem. No episódio do Ed Mota, ele foi infeliz no seu julgamento, na forma de tratar, mas não cometeu nenhum crime. Mas a sociedade vai se manifestar, os movimentos vão se colocar e ele vai ter que responder. A liberdade de expressão está assegurada, ele falou, mas tem que arcar com as consequências. Esse tipo de debate é importante. É importante que as pessoas expressem o que pensam, desde que nãos seja crime. Algumas políticas educacionais já pautam os direitos humanos nas escolas para que as crianças entendam seus próprios direitos e que vivem numa sociedade plural, de pessoas que pensam de forma diferente. O grande aprendizado não é fazer com que pensem como você pensa, mas conviver bem com as diferenças. É uma ação importante no processo formativo. Nesse aspecto, as redes sociais cumprem um papel importante. As pessoas se sentem muito livres para falar sobre diferentes aspectos e algumas manifestações vão ter resposta.
OP – Então é bom para o politicamente correto que existam vozes dissonantes?
Inês - Desde que não firam a própria lei e que estejam dispostas a ouvir o que a sociedade vai colocar sobre o que dizem, as pessoas podem falar o que pensam. A discriminação da criança associada à marginalidade, por exemplo. Você já viu em alguma matéria “menor vai ao shopping fazer compras”? Certamente o termo “menor” era associado à marginalidade. Hoje a gente já tem instrumentos, como o próprio ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que vão ajudando as pessoas a amadurecerem sobre o tratamento que devem dar à criança e ao adolescente. Hoje temos uma certa tradição de pensamento que se preocupa com o que significa ser mulher, ser mãe, profissional, mas esses conceitos continuam em disputa efetiva com outras referencias simbólicas. Vê as propagandas de cerveja, onde a mulher aparece como objeto sexual. Na verdade, se tem pluralidade, tem diferentes possibilidades de identificação. Quando tem hegemonia de modelo, que reduz apenas à condição de objeto, estamos comprometendo a formação das próximas gerações. Viemos de origens diferentes, formações diferentes, experiência diferentes, por isso é um processo de disputa permanente, mas o respeito pelo outro está avançando e esse é o elemento importante.
Fonte: O Povo