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domingo, 22 de maio de 2011

O que vale é o respeito

Inês Vitorino, professora da pós-graduação de Comunicação Social da UFC, vê no politicamente correto um código de respeito e tolerância imprescindível, mas também acredita que as opiniões diferentes, e por vezes politicamente incorretas, enriquecem a discussão e ajudam a construir um respeito mais sólido na sociedade

Inês Vitorino acredita que o debate estimula as transformações sociais (DIVULGAÇÃO)

Ser politicamente correto ganhou conotação de chatice em alguns círculos. Para detonar o monitoramento dos movimentos sociais, argumenta-se o “sagrado” direito à liberdade de expressão, mas a professora Inês Vitorino derruba de primeira essa defesa. “Quem disse que o sujeito não pode dizer o que pensa? Só não pode nos casos em que já é lei, aí a liberdade de expressão não pode ser maior, mas no geral, as pessoas podem dizer o que pensam desde que estejam dispostas a ouvir o que os movimentos têm a dizer sobre isso”.

Para ela, e para a maioria dos sociólogos e ativistas ouvidos neste caderno (com exceção dos articulistas), o politicamente correto é o avanço do respeito aos grupos e indivíduos em suas singularidades, portanto, só tem efeitos positivos. Mas a professora da pós-graduação em Comunicação do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (UFC) defende a pluralidade dos discursos. Do conflito, surge o debate e com o debate, se avança. “O mais importante é que a discussão está acontecendo. Isso é parte de um processo permanente e os ganhos são muitos”, acredita Inês. (Mariana Toniatti)

O POVO - O que quer dizer o termo politicamente correto? Ele tem uma conotação negativa ou positiva? 

Inês Vitorino - O termo vai classificar um conjunto de expressões, posturas e simbologias que tratam indivíduos e grupos sociais com respeito e tolerância. Então o que seria o politicamente incorreto? Seria quando esses mesmos termos desrespeitam algum indivíduo ou grupo. Avaliar se é positivo ou não cabe à sociedade. Que valores, elementos culturais e posturas ela deve ter para assegurar o respeito a todos os seus cidadãos? Você não vai encontrar uma visão unânime se é positivo ou não porque as pessoas pensam diferentemente.

OP - Exigir o uso de determinadas expressões mais corretas e o respeito às diferenças é um sinal claro de evolução na sociedade. Essa patrulha maior nesse momento, a censura, é parte de uma fase de transição? Isso vai ser introjetado aos poucos?

Inês - Quero fazer dois comentários sobre dois termos que você usou. Primeiro, patrulha. Quem trabalha com análise do discurso sabe que esse é um termo negativo para tratar das ações que procuram a proteção legítima dos grupos. O outro termo é censura. Censura é controle prévio seja feito pelo estado, pelas indústrias de comunicação ou pelas instituições econômicas. O que significa, baseado no autor Pierre Bourdier, que a censura é feita todos os dias em todos os jornais do mundo, porque em todos, guardadas as singularidades, tem informação que não vai a público porque contraria anunciante. Nesses casos, as pessoas não falam em censura, mas muito facilmente se chama de censura a manifestação dos outros grupos sociais, só ocorre censura nesses casos. No episódio do Ed Mota (que falou mal das mulheres e disse que o sul do Brasil é que tem dignidade) e noutros que você comenta, não identifiquei reação de censura. No momento em que me posiciono na esfera pública, na televisão, no Congresso, nas redes sociais, e me expresso tenho que estar disposto a ouvir quem vai se contrapor, tenho que arcar com as consequências. Quanto mais a sociedade avança no processo, mais avançamos na construção de termos legítimos, consensualmente aceitos. Esse é um processo. Estamos numa transição? É algo que vai se consolidar? Enquanto houver, e acredito que sempre haverá, grupos sociais diferentes, visões de mundo diferentes e classes sociais, as diferenças se reproduzem na disputa simbólica. Esse é um processo, na minha opinião, permanente. Mas vai trazendo novas questões e algumas são consolidadas. Na Europa, determinadas atribuições são inaceitáveis. Referências pejorativas à mulher têm uma cobrança muito forte. Essas discussões fazem com que as pessoas pensem melhor na forma de tratar e pensar o outro. Quanto mais respeitosa for a sociedade em relação à diversidade dos seus cidadãos, indivíduos e grupos – e no caso do Brasil, é muito plural –, mais esse processo vai sendo fortalecido.

OP - O que você vê já consolidado?

Inês – Um exemplo é como a questão do racismo é tratada. Hoje é crime. Significa que acabou o racismo? Não. Significa que a sociedade compreendeu que a postura racista e de desrespeito pode ser classificada como crime. Não é mais uma questão de liberdade de expressão, é desrespeito à lei. A liberdade de expressão não pode estar acima, do mesmo jeito que não posso ficar impune se roubar ou matar alguém. Vou sofrer as consequências do que estou falando. No Brasil, a gente avança em algumas áreas que acabam servindo de estimulo para outras áreas.

OP – O politicamente correto pode camuflar ainda mais os preconceitos do brasileiro que já são meio escondidos? Eu adoto um discurso porque sei que é o que esperam, mas na prática, tenho outra postura?

Inês - É um processo. Quando dei o exemplo da lei, é um exemplo de amadurecimento, mas não significa que seja regra geral no imaginário. Existe racismo, mas ter prática racista é crime. É o papel da política pública. Tem que pensar que é muito difícil que a lei esteja na frente dos processos. Os movimentos sociais colocam em discussão e fazem com que as pessoas pensem. No episódio do Ed Mota, ele foi infeliz no seu julgamento, na forma de tratar, mas não cometeu nenhum crime. Mas a sociedade vai se manifestar, os movimentos vão se colocar e ele vai ter que responder. A liberdade de expressão está assegurada, ele falou, mas tem que arcar com as consequências. Esse tipo de debate é importante. É importante que as pessoas expressem o que pensam, desde que nãos seja crime. Algumas políticas educacionais já pautam os direitos humanos nas escolas para que as crianças entendam seus próprios direitos e que vivem numa sociedade plural, de pessoas que pensam de forma diferente. O grande aprendizado não é fazer com que pensem como você pensa, mas conviver bem com as diferenças. É uma ação importante no processo formativo. Nesse aspecto, as redes sociais cumprem um papel importante. As pessoas se sentem muito livres para falar sobre diferentes aspectos e algumas manifestações vão ter resposta.

OP – Então é bom para o politicamente correto que existam vozes dissonantes?

Inês - Desde que não firam a própria lei e que estejam dispostas a ouvir o que a sociedade vai colocar sobre o que dizem, as pessoas podem falar o que pensam. A discriminação da criança associada à marginalidade, por exemplo. Você já viu em alguma matéria “menor vai ao shopping fazer compras”? Certamente o termo “menor” era associado à marginalidade. Hoje a gente já tem instrumentos, como o próprio ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que vão ajudando as pessoas a amadurecerem sobre o tratamento que devem dar à criança e ao adolescente. Hoje temos uma certa tradição de pensamento que se preocupa com o que significa ser mulher, ser mãe, profissional, mas esses conceitos continuam em disputa efetiva com outras referencias simbólicas. Vê as propagandas de cerveja, onde a mulher aparece como objeto sexual. Na verdade, se tem pluralidade, tem diferentes possibilidades de identificação. Quando tem hegemonia de modelo, que reduz apenas à condição de objeto, estamos comprometendo a formação das próximas gerações. Viemos de origens diferentes, formações diferentes, experiência diferentes, por isso é um processo de disputa permanente, mas o respeito pelo outro está avançando e esse é o elemento importante.

Fonte: O Povo

domingo, 1 de maio de 2011

O aluno de nome estranho

Nos anos 30, o principal estabelecimento de ensino do Estado era o Liceu do Ceará. Fundado pelo senador Pompeu (padre-doutor Thomaz Pompeu de Sousa Brasil), em 1845, o Liceu era equiparado ao Colégio Pedro II do Rio de Janeiro e, em suas cátedras, figuravam as maiores inteligências do magistério cearense. A cadeira de Português, por exemplo, era exercida pelos professores Otávio Terceiro de Farias e Martinz de Aguiar, membros da Academia Cearense de Letras. A de Latim, pelo famoso Monsenhor José Quinderé, além de outros lentes de reconhecida envergadura e indiscutível nomeada, como Hermenegildo Firmeza, de História; Domingos Braga Barroso, de Geografia; César Campelo, de Matemática; e Aderbal de Paula Sales, de Ciências Físicas e Naturais.

Era o tempo dos manuais de Felisberto de Carvalho e da velha “Crestomatia”, seleta de textos em prosa e verso dos maiores escritores brasileiros e portugueses, organizada por um mestre gaúcho, o professor Radagásio Taborda.

Não era fácil entrar no Liceu. O candidato era submetido a rigorosa seleção, um exame oral e escrito que derrubava a maioria dos pretendentes. E não era sem razão: a história do Ceará tem mostrado que dos bancos daquela velha escola vieram magistrados, deputados, escritores, ministros de Estado, senadores e governadores, nomes que engrandecem e orgulham a nossa terra.

Em 1936, segundo os arquivos consultados, matricularam-se 749 alunos, oriundos da capital e de quase todas as regiões do Ceará. Da turma de novatos, havia um sujeito dos Inhamuns, que desde o primeiro dia ficou conhecido em todo o colégio. Caladão, macambúzio, não procurava se entrosar nas rodas, nos convescotes do recreio, preferindo ficar pelos cantos a ler uns romances de Camilo Castelo Branco.

A razão do destaque do rapaz dos Inhamuns não era propriamente o seu jeito ensimesmado, mas o nome que portava. Filho de primos, tinha apenas dois nomes: Sofrêncio Bosta.

Quando aconteceu a chamada, na primeira aula, foi um escândalo. Ninguém queria acreditar que alguém pudesse ter um nome daquele. Que pai desnaturado pusera no mundo um filho para carregar pelo resto da vida o nome de Sofrêncio Bosta? Era um absurdo.

Absurdos devem ser corrigidos. Por isso, passado aquele primeiro momento de gozação e achincalhamento que, ao que consta, nem de leve abalou a tranquilidade do leitor de “Amor de Perdição”, começou um movimento para mudar seu nome. Ele não queria. Dizia que estava tudo bem, que nada o estava incomodando, que tanto fazia ter este nome ou aquele.

Entretanto, alunos e professores levaram o assunto a sério e, mesmo à revelia do titular, resolveram que o nome do Sofrêncio Bosta seria, sim, alterado. Ah, nunca se poderia admitir que um colégio da categoria do Liceu do Ceará pudesse ter um aluno com nome tão esdrúxulo e escatológico. Não pegava bem.

Como o Liceu era um reduto de celebridades, tendo entre os professores um tabelião e dois juízes de direito, o processo de alteração onomástica tramitou sem maiores atropelos.

E eis que chega o dia auspicioso da mudança de nome do rapaz dos Inhamuns. Todos se dirigiram ao cartório em grande caravana ficando as salas do Liceu praticamente vazias. A aglomeração na rua Major Facundo diante do Cartório Pergentino Maia chamava a atenção das pessoas da rua que, curiosas, se incorporavam à ansiedade geral. No entanto, para admiração de todos, o personagem principal daquele fuzuê não compareceu. Sim, senhor, a pessoa que se supunha ser a maior interessada, a portadora da extravagância nominal, simplesmente não estava ali.

Uma comissão de alto nível foi destacada para encontrar o indigitado e trazê-lo de qualquer modo para o ato de substituição de nome.

O adolescente foi encontrado em sua casa, imaginem, lendo placidamente outro romance de Camilo. Trazido pelos colegas, mostrou absoluta indiferença àquela multidão e, quando o escrivão perguntou solenemente que novo nome escolhera o senhor Sofrêncio Bosta para, a partir daquela hora, passar a figurar em todos os seus documentos, o infeliz disse que não havia pensado em nenhum.

– O quê?– exclamaram todos surpresos e em coro alto – todo este processo, todo este movimento, todo o nosso esforço e você não escolheu um nome para substituir sua horrorosa designação civil? Meu Deus, quanta irresponsabilidade!!!!

Instado a indicar um nome, qualquer um, porque aquela situação já estava passando dos limites, Sofrêncio Bosta, na maior serenidade deste mundo, resolveu:
– Pois bem, eu vou dizer meu novo nome, já que vocês insistem: Ponha aí... PEDRO BOSTA!

 Escrito por Administrator   

terça-feira, 19 de abril de 2011

Troca de autorias de textos na internet – ignorância ou desonestidade intelectual?

Dois males têm afetado muitos dos internautas que ‘gostam’ de divulgar textos em blogs e sites de relacionamento: o desconhecimento da literatura em função da falta de leitura, e a desonestidade intelectual, muitas vezes decorrente de atitudes inconsequentes ou mesmo de ignorância. 

Por uma razão ou outra, o mundo virtual tem se tornado uma ferramenta de disseminação de falsas autorias e adulteração de textos literários, tanto no conteúdo quanto na forma. São essas práticas nada lícitas o assunto do artigo de hoje.

Leia texto na íntegra: aqui

por Aila Sampaio

sábado, 2 de abril de 2011

O leitor brasileiro na visão de nossos escritores clássicos

Publicado em 1º de março de 2011
Juliana Carvalho
Professora e redatora
Em continuação ao tema explorado no minicurso Literatura, Ensino e Divulgação Cultural, oferecido pela professora doutora Muna Omram na UFF, sobre o qual falamos aqui na edição de 4 de janeiro de 2011, a formação do leitor brasileiro mereceu especial atenção. Para Antonio Candido, faz pouco tempo que as obras nacionais trabalham com base no sistema literário autor – obra – público. Para o historiador, a literatura deve valorizar um esquema comunicativo mais completo, que não isole o autor em sua produção, mas coloque-o em diálogo com outros autores, adeptos ou não da mesma tendência. Durante muito tempo, o que vimos foi uma produção literária mais ou menos consciente de seu papel e que renegava o leitor a um papel secundário. Para esses autores, o papel do leitor era apenas ocupar um lugar de destaque como receptor privilegiado dessas obras.

Formação do público leitor no Brasil

A figura do leitor começa a aparecer na produção literária nacional no Romantismo. Os autores românticos se posicionavam como professores desses leitores. Em Memórias de um Sargento de Milícias, Manuel Antônio de Almeida parece conduzir o leitor pela mão, sempre recapitulando uma ação do capítulo anterior:

Os leitores devem estar lembrados de que o nosso antigo conhecido, de quem por algum tempo nos temos esquecido, o Leonardo Pataca, apertara-se em laços amorosos com a filha da comadre e que com ela vivia em santa e honesta paz. Pois este viver santo e honesto deu, em tempo oportuno, o seu resultado. Chiquinha (era este o nome da filha da comadre) achou-se de esperanças e pronta a dar à luz.
José de Alencar fornece ao leitor uma formação engajada com o projeto político e ideológico do Romantismo na primeira geração, representado pelo indianismo. Esse projeto pretendia, por meio da literatura, fundamentar os alicerces para a construção de uma nação ideal:

O que melhor do que a história de Peri para despertar o furor nacionalista que parecia adormecido no inconsciente coletivo — na juventude brasileira que ansiosa aguardava a chegada do trem transportando as páginas folhetinescas? O sentimento solidário agrupava jovens para uma leitura em voz alta a favor de quem não possuía um exemplar.

A mais conhecida razão para a escolha do índio como herói nacional foi a resistência que impuseram aos portugueses. Mas José de Alencar tenta desmentir isso nas primeiras linhas de Iracema. A luta apresentada quando Iracema se encontra com o branco é breve e apenas consequência de um reflexo de defesa contra um estranho. Mas ao disparar sua flecha e ferir o guerreiro, logo sente remorso. Este, ao contrário, “de primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida” .

Um pouco mais distante dos temas políticos, Machado de Assis tomou para si a missão de fornecer cultura ao leitor. São muitos exemplos, mas o conto Missa do Galo apresenta isso de forma bem clara. Observe o trecho em que Nogueira fala a Conceição (e ao leitor) sobre o romance que está lendo:

Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução, creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas (...).

— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
— Justamente: é muito bonito.
— Gosta de romances?
— Gosto.
— Já leu A Moreninha?
— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns.

Já o conto A Cartomante tem início com uma citação de Shakespeare:

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
Além de sugerir listas de livros, peças, concertos e obras culturais às quais o indivíduo deve ter acesso para adquirir formação ampla, outro recurso usado por Machado de Assis é aproximar-se do leitor, fazendo-o sentir-se parte da história. Em Dom Casmurro, no capítulo 10, chama o leitor de amigo para convencê-lo:

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição, cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim.

Ao ser convidado a compartilhar os pensamentos e atitudes do narrador, o leitor é levado a refletir e tomar partido na narrativa. No caso da história narrada por Bentinho, o leitor decide se acredita na veracidade dos fatos ou não. Machado tenta claramente seduzir o leitor chamando-o de amigo ou tratando-o com cordialidade, mas o considera inapto para entender as sutilezas da linguagem. Talvez por isso Capitu não tenha sido condenada pelo autor, mas sim pelo público.

Shakespeare volta a ser referência, se observarmos a estrutura e as semelhanças entre os perfis de Bentinho e Otelo. Bentinho, assim como Otelo, também reflete desajuste social, sendo descrito como um sujeito manipulado e sem decisões próprias. Fruto da autoridade matriarcal e da acomodação burguesa, vê em Capitu uma figura cuja força, exuberância e firmeza de atitude são capazes de subjugar sua própria identidade. Ambos viram como solução para a suposta infidelidade a morte de suas esposas. Otelo, em sua personalidade mais sanguínea, parte para o ato evidente, estrangulando Desdêmona, reparando sua honra numa atitude totalmente movida pela emoção, chegando à insanidade. Já Bentinho, um homem que prezava as convenções sociais, buscou solução mais racional, embora covarde, em ignorar Capitu, retirando-a aos poucos de seu convívio. O assassinato pode ser entendido na própria narrativa, em que Dom Casmurro, quase que por descuido, deixa escapar que ela morreu na Europa, sem uma observação mais relevante, distante dele e já há muito de seu coração.

No século XX, Lima Barreto cria uma personagem leitora, o major Policarpo Quaresma, que se eleva quando transforma em ideal o conteúdo de suas leituras. Ainda assim, o autor apenas indica uma lista extensa de obras, sem oferecer nenhuma explicação sobre sua importância. Isso evidencia o desprezo ao leitor presente na literatura brasileira em geral até então.

Mário de Andrade, em seu livro Amar, verbo intransitivo, conta com a ajuda do leitor na medida em que este, ao ler um texto, estabelece conexões implícitas, preenche lacunas, faz deduções, comprova suposições, e tudo isso significa o uso de um conhecimento de mundo em geral e das “regras” literárias em particular. Partindo desse princípio, o autor constrói uma obra cheia de lacunas, em que é solicitado o trabalho do leitor para interpretá-las. Apesar disso, ainda não há diálogo. O leitor realiza seu trabalho de interpretação já com base nas pistas oferecidas pelo autor, que direciona a leitura.

O conceito de metanarrativa permite ao autor guiar o leitor por meio de uma sucessão de lacunas ao fim das quais ele terá reconstruído o texto segundo a intenção do autor. A obra apresenta pistas que balizam as interpretações. A consciência de que há uma regra de montagem é que nos leva a fazê-lo corretamente.

A obra apresenta um narrador onipresente e onisciente, que interrompe a história para comunicar ao leitor que o que ali está em palavras não é algo inventado, mas efetivamente um relato. O leitor, a par das impossibilidades típicas do relato, como a onisciência e onipresença autoral, aceita a tarefa de contextualizar a ficção e torná-la verossímil. Existe uma intenção clara que solicita a cooperação do leitor, mas não se predispõe a dividir com ele o trabalho de autoria.

Talvez o primeiro autor dentro da literatura brasileira que realmente convide o leitor para ajudá-lo na construção de sua obra é Graciliano Ramos. São Bernardo, aclamado no meio acadêmico, apresenta um narrador que dialoga com o leitor com base em sua maturidade. O leitor passa a ser produtor e operário, com base no sistema de produção capitalista. Desde o início de São Bernardo, o protagonista compartilha com o leitor o processo de elaboração da obra, questiona sobre a linguagem a ser empregada, a divisão dos capítulos. Esses traços metalinguísticos tornam a obra ainda mais complexa; esse estilo pode oferecer pistas para compreender Paulo Honório, que compartilha conosco suas memórias. Já no início do livro percebemos a intenção do autor: “Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho”. Paulo Honório convida o leitor para construir a narrativa junto com ele, demonstrando solidariedade e reconhecendo a necessidade de diálogo, entretanto sem desprezá-lo ou diminuí-lo.

A partir da obra de Graciliano Ramos, outros autores passaram a respeitar a independência do leitor, já que somos nós que produzimos a leitura, construímos o personagem e geramos sentido, independente da criação do autor. Bastava aos autores apenas o reconhecimento e a elaboração da obra a partir dessa perspectiva.