terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Arte sacra deteriorada

A Igreja São José de Ribamar, em Aquiraz, guarda um dos mais antigos acervos de arte sacra. O patrimônio está comprometido diante da falta de manutenção

Desde o seu tombamento, há 25 anos, pelo Estado, a Igreja São José de Ribamar não passa por reformas
Quem se der ao luxo de sentar em uma das calçadas largas, ladeadas por ruas de calçamento e rodeadas de casarões típicos da aristocracia portuguesa, no vizinho município de Aquiraz, a 30 quilômetros de Fortaleza, vai perceber a movimentação dos moradores em torno dos preparativos para a grande festa que se avizinha.

É que daqui três anos, em 2013, a primeira paróquia do Ceará, fundada pelos jesuítas em 1713, completará 300 anos de existência. A gênese representativa da transformação histórica que se deu desde então, e que leva o nome de Igreja Matriz de São José de Ribamar é, hoje, uma das principais atrações turísticas do Estado e o xodó dos moradores do lugar.

A edificação faz parte do conjunto histórico-arquitetônico do centro urbano de Aquiraz, tombado desde 1983, pelo decreto 16.237, do governo do Estado do Ceará, composto pela Casa de Câmara e Cadeia, hoje abrigo do Museu de Arte Sacra de Aquiraz, e pela Casa do Capitão-Mor (tombada em 2006).

São José de Botas,São Sebastião e Nossa Senhora das Graças e Cristo Ressuscitado: acervo comprometido
Mas, nem só de admirar os traços barrocos e neoclássicos que saltam aos olhos nas portas almofadadas da entrada, no púlpito de madeira lavrada, nos painéis pintados no forro da capela-mor ou mesmo do altar que exibe a imagem de São José de Ribamar (popular relicário São José de Botas), se ocupam os transeuntes da charmosa Aquiraz.

O risco iminente de danos irreversíveis ao patrimônio histórico, gerado pela infiltração de água das fortes chuvas que vem caindo esse ano, está tirando o sono dos responsáveis pela administração da igreja e dos católicos de plantão. Desde o tempo em que foi tombada, há 25 anos, rememora o pároco recém-chegado, Antonio Robério Martins de Queiroz, a Igreja não passou por uma reforma sequer.

Como consequência, em recente domingo, durante missa matinal celebrada sob muita água, os fiéis ficaram em polvorosa com o avanço dos vazamentos no interior patrimônio histórico. "As paredes laterais formaram uma queda d´água para dentro da igreja, parecia uma cachoeira.

O ajudante da Paróquia, Marciano Lima Gomes, mostra que a pintura original foi totalmente comprometida após camuflada por reformas ao longo do tempo
Além das goteiras que apareciam por todos os lados, as pessoas tiveram dificuldade em se proteger. Toda madeira da estrutura está comprometida", relata o sacerdote.

De fato. No interior da construção secular, erguida quando ainda éramos Siará-Grande, o cheiro de esquecimento está por todos os lados. São paredes úmidas, telhas em desalinho, tapetes esbranquiçados, pinturas descascadas, quinas quebradas e mofo, muito mofo por todo lugar. Fora a conservação das imagens em tamanho natural de São Miguel Arcanjo, que está quebrada, e do impressionante Senhor dos Passos, devidamente paramentado de roxo por causa do período quaresmal.

Seria suficientemente preocupante os problemas de falta de manutenção relatados acima, mas ainda não é tudo. Com as chuvas se infiltrando por todos os lugares, o que está realmente em risco é a preservação do painel pintado no forro da capela-mor que, a exemplo do afresco da contemporânea Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Viçosa do Ceará, recentemente restaurada, relata, através das imagens, sagas e epopeias de heróis bíblicos. Com diversos danos às cornijas (molduras) que ornamentam o painel, algumas caíram e outras estão danificadas devido às intempéries.

Em 2006, após parte da estrutura de madeira do teto da sacristia (que fica bem ao lado do forro que abriga a obra de arte) ter desabado, uma pequena reforma foi realizada no local. No espaço onde ocorreu o incidente por pouco ninguém se machucou, mas é lá onde são feitas as confissões e estão localizados os armários da paróquia.

De acordo com o historiador Otávio Menezes, da Coordenadoria de Patrimônio Histórico e Cultural (COPAHC), o governo é responsável pelo tombamento, mas não fica com o ônus da manutenção. "O tombamento é uma instância jurídica para garantir que o bem seja mantido, mas restauro, reforma, manutenção, tudo isso é por conta do proprietário, nesse caso, a Igreja Católica. Há algumas vias para conseguir recursos, como os editais, por exemplo. Mas, esse ano, devolvemos quase R$ 100 mil ao Estado, dos recursos destinados pelo III Edital de Apoio à Preservação do Patrimônio de Natureza Material, por causa da pouca demanda de projetos.

Aprovamos um em Aquiraz que prevê a educação patrimonial dos paineis da capela-mor da Igreja de São José de Ribamar. Mas foi só", lamenta Menezes.

Diante do exposto, o secretário de Cultura e Turismo do município de Aquiraz, Erick Vasconcelos, garantiu que o poder público está acompanhando de perto os problemas da Igreja Matriz, mas disse que ainda não há recursos garantidos para evitar que problemas maiores aconteçam.

"Infelizmente, a São José de Ribamar não foi contemplada no Prodetur (Programa de Desenvolvimento do Turismo do Nordeste), que está garantindo a reforma da Casa do Capitão-Mor, parte do Mercado das Artes, o Museu Sacro, e o piso que unificou a praça Cônego Araripe à Igreja. Essa questão é uma das prioridades do governo do Estado, esse patrimônio é nosso creio que o problema logo estará resolvido", garante o secretário.

E assim o tempo segue passando, cumprindo a sina de desfazer o passado, fazer o presente e refazer o futuro, porque essa é sua arte. Recordando sempre que, se não soubermos quem fomos, dificilmente compreenderemos quem somos, muito menos para onde estamos indo. O passado religa o futuro.

FIQUE POR DENTRO

Lendas santas
Reza a lenda brasileira que São José de Ribamar, ou São José de Botas, como foi popularizado no mundo inteiro por estar devidamente trajado para viagem, com mantos e botas, representa os bandeirantes que, à época, percorreram todo território nacional com suas contribuições tão salutares quanto questionáveis, junto à empreitada missionária católica. O de Aquiraz teria sido encontrado boiando às margens de alguma das belas praias da costa leste do litoral cearense.

A história repassada pela tradição oral deu conta de que, nem com reza braba, vela branca e ajuda de um carro-de-boi, a estátua conseguiu ser removida para uma localidade distante. Decidido em concílio de pescadores que o Santo de Botas ficaria mesmo na primeira capital do Siará-Grande, a estátua teria tomado peso de plumas. Ficando lá virou, claro, padroeiro do lugarejo.

Milagres à parte, e muita história depois, o fato é que, até hoje, a bela obra de arte do século XVIII ocupa o espaço central do altar-mor, acompanhado de ninguém menos que São Sebastião, outro santo popularíssimo entre os moradores de Aquiraz, Nossa Senhora das Graças e Cristo Ressuscitado.

NATERCIA ROCHA 
REPÓRTER

Fonte: Diário do Nordeste

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