terça-feira, 12 de abril de 2011

As letras de ontem e de hoje do Brasil

«Bufo & Spallanzani», de Rubem Fonseca, é uma das obras de referência da literatura contemporânea brasileira. Depois de «O Seminarista», a Sextante, para satisfação dos leitores portugueses, continua a editar a obra do Prémio Camões 2003. Um nome que surge cada vez mais forte nas letras do Brasil é João Paulo Cuenca, autor de «O Único Final Feliz para uma História de Amor é um Acidente», editado pela Caminho. 

Através de um suposto policial, Rubem Fonseca apresenta-nos um romance complexo mas fascinante, onde a própria literatura acaba por ser o tema central da obra, já que o narrador, o autor Gustavo Flávio (também lvan Canabrava), procura escrever um livro que tem como título… «Bufo & Spallanzani».

Uma oportunidade de ouro para o brasileiro reflectir sobre a literatura, fazendo com que muitas vezes a ficção esteja mais próxima do que é habitual da realidade. Aliás, é complicado separar o narrador do autor, que, no entanto, mantém o seu habitual registo criativo, preenchido de violência, sexo, diálogos cortantes e um texto apurado ao máximo, onde não há espaço para frivolidades nem superficialidades.

«Quando publico um livro de contos dizem que são inferiores aos meus poemas; os meus poemas, por sua vez, são considerados inferiores aos meus romances; meus romances policiais são inferiores aos meus romances de amor, etc. Para não falar dos equívocos que já foram escritos em relação às minhas peças teatrais. O mundo da arte é o mundo da inveja e da picuinha. Quando não podem dizer que um livro meu é ruim, dizem que sou mulato. Não estou interessado no que os outros dizem ou pensam de mim, nem mesmo no que as mulheres pensam de mim, desde que continuem indo para a cama comigo. Chamam-me de maníaco sexual, mas o que querem que eu faça com o meu pau que vive duro? Pau duro foi feito para enfiar na boceta das mulheres etc. Até índio sabe disso. Passei muitos anos de abstinência, tenho um metro e noventa de altura e peso mais de cem quilos, acho que já disse isso. Aliás, que conversa era aquela? Tergiversava, sentia febre. Que tal contar uma piada: não faço nem nunca fiz ginástica, sou extremamente preguiçoso, a única ginástica que faço é segurar a alça do caixão dos amigos que fazer ginástica (ver Churchill).»

«Bufo & Spallanzani» é uma obra cujas histórias (principal e secundárias) frequentemente se cruzam entre si, obrigando por isso a uma leitura atenta por parte do leitor (é fundamental compreender o desdobramento da personagem principal ao longo dos capítulos, por exemplo), que paulatinamente entra na trama criada por Rubem Fonseca, um dos principais escritores de policiais do Brasil. O que torna esta obra grande é o constante diálogo entre a ficção e a realidade que há nas suas páginas. A crise criativa que assola o protagonista-escritor é motivo para uma reflexão por parte do autor, que oferece ao público uma obra carregada de… criatividade. Em resumo, Rubem Fonseca convida-nos a escrever «Bufo & Spallanzani», já que o livro em si é a história do nascimento de um romance, um romance chamado «Bufo & Spallanzani», o mesmo que o leitor tem entre mãos.

«Colocou os papéis sobre a mesinha de cabeceira. O meu livro Os Amantes estava ali, mas ele não pegou para prosseguir na leitura que iniciara dias antes. Creio que concluíra que a vida do autor e o que ele escreve têm uma relação tão superficial e mentirosa que não valeria a pena ler quatrocentas páginas para nada descobrir.»

Se Rubem Fonseca é da velha guarda da literatura brasileira, João Paulo Cuenca é apontado como uma das novas vozes do Brasil. O seu último romance, «O Único Final Feliz para uma História de Amor é um Acidente», editado pela Caminho, comprova essa aptidão. Só o capítulo 3 justifica os elogios (o relato do acidente do extenso título do livro), embora a obra no seu conjunto mereça uma nota mais do que positiva. Estamos em Tóquio, mas numa Tóquio longe dos padrões normais. Há a inevitável tecnologia que rodeia tudo e todos, mas Cuenca vai mais fundo e encontra um «submarino noturno» que «navega pela fundação dos edifícios, entre cabos de eletricidade, túneis de esgoto e metrô», um «submarino» que é uma espécie de Big Brother gigantesco controlado pelo poeta Atsuo Okuda, pai de Shunsuke Okuda, jovem que revela no livro a sua relação nada pacífica com o seu progenitor; jovem insatisfeito com a sua vida.

«O trabalho é alienante, e o mundo fora dele também. Ainda assim, depois do expediente, acontecem coisas. Que, no início, parecem me libertar.
Até que eu descubra que são formas diferentes de alienação.»
Alienação que esvai-se quando Shunsuke Okuda conhece a «garçonete» de um «bar de acompanhantes», a polaca Iulana Romiszowska, apaixonando-se de imediato pela «caucasiana cinco anos e treze dias mais nova», «muito alta», com «olhos grandes e redondos de cavalo», «peitos inflados como balões de gás», «dedos dos pés… grossos», «panturrilhas… sólidas». «Tudo na mulher que iria suceder Misako é grande, menos o nariz e as orelhas, pequenos e desproporcionais ao tamanho da cabeça».

Se antes Atsuo Okuda aceitava com alguma letargia as actividades do seu pai (que isola-se do mundo acompanhado de uma boneca insuflável, Yoshiko - que tem pensamento próprio -, onde insere as cinzas da sua ex-mulher), se antes aceitava que a vida era apenas «olhar e ser invisível» na Sala do Periscópio, onde as imagens e o sons de quem merecia ser observado eram enviadas pelo «submarino», agora, apaixonado, o jovem coloca finalmente em causa toda a sua existência. A passada e a presente. Mas também a futura.

«Empilhadas nos armários da Sala do Periscópio estão milhares de fitas em Betamax, vhs e depois discos prateados de dvd com imagens da minha vida, da adolescência até o instante em que terminará este relato».

Numa novela bastante visual e afectiva, Cuenca apresenta uma Tóquio muito distante da iconografia habitual. O brasileiro descobre uma metrópole desconhecida para muitos, como acontece por exemplo ao redor do Teatro Koma, «principal ponto de encontro de moscas humanas da área, cercado por lanchonetes de fast-food americano, agências de prostituição, prédios de karaokê, video game, patchinko e sex shops, restaurantes de yakitori gordurosos, árvores ocas e nuas, bares mal iluminados, lojas de quinquilharias vinte e quatro horas e corvos catando lixo sobre poças escuras nas ruas e becos superlotados de estudantes embriagados, homens de negócio com gravatas afrouxadas, vagabundos de todos os quilates, acompanhantes, carecas Yakusa e estrangeiros perdidos como baratas do mar sob o oceano de neon, incansavelmente abordados por intermediários multiétnicos de drogas e mulheres».

Num voyerismo contagiante, Cuenca escreve uma bela história de amor, embora, como revela o título, não tenha um desfecho de conto de fadas, algo que o poeta Atsuo Okuda revelara há muito nos seus sonhos:

«- Um dia você entenderá que o único final feliz possível para uma história de amor é um acidente sem sobreviventes. Sim, Shunsuke, meu estorvinho, meu pequeno fugu idiota: um acidente sem sobreviventes.»

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