sexta-feira, 18 de março de 2011

A poética de Pedro Henrique Saraiva Leão

O poético se evola de todas as manifestações artísticas; na composição do poema, encontra a sua materialidade em relação à criação literária. O poeta, por sua vez, é resultado da elaboração, ao longo da cultura, de um discurso que, constantemente renovado, faz com que ele seja tocado pelo estado poético
Nesse sentido, o poeta, se gira na "essencial atmosfera dos sonhos lúcidos", é, pelo meio poético, impelido a ter uma singularidade; e, nesse caso, o que reconhece nos outros poetas - e o que destes colhe - é, em essência, o natural à poesia, pois, esta, naquele, é, antes de tudo, um apelo que vai ao encontro de uma vocação, um socorro a uma voz, sempre carente, assim, de uma inesgotável beleza.

O ponto de partida
A leitura de um grande poeta, portanto, veste-se de incontáveis desafios, quer sob aspectos de formas, que sob os relativos a cultivos temáticos. Por isso, as considerações iniciais foram ditadas pela empreitada de realizar um exame crítico do discurso literário de Pedro Henrique Saraiva Leão, uma vez que os fios por que se constrói apontam uma multiplicidade de recursos, ora de natureza morfossintática, ora de explorações sonoras; de tal sorte que, na folha de papel, o contorcionismo das palavras, em sílabas despedaçadas, inaugura sons e formas; e, até mesmo sob as estruturas aparentemente simples, imprime-se uma complexidade em relação à lógica e ao sentido.

O alimento
A matéria da poesia é a linguagem, pois desta advém o sensível. Nesse sentido, a lírica de Pedro Henrique Saraiva Leão concentra-se, sobretudo, no trabalho com a construção do discurso; e, este, nele, é, a rigor, o motivo do poético. Trata-se, então, de uma poética da linguagem, em que, mais do que a produção de um sentido, o que, em verdade, constitui o interesse do discurso, é o jogo dos significantes; isto é, o que a mais uma palavra, se provocada, poderá, enfim, dizer, ou, quando não, aludir. E todo o encantamento que o seu poema provoca no leitor resulta, antes, da naturalidade com que consegue extrair, de palavras já comuns, a seiva primeva, o nácar de que todos carecem, para que, assim, possam ser entregues ao prazer estético, como nessa composição do livro "Meus Eus": (Texto I)

Leitura do poema
Pedro Henrique Saraiva Leão é poeta de inúmeras particularidades: seus poemas, por exemplo, não comportam títulos; com isso, não há qualquer elemento-orientador em relação a uma possível temática. Desse modo, o verso surge, então, de chofre, desconcertando o leitor, enchendo-o de indagações perplexas, intrigado sob a égide das elipses mentais.

O primeiro verso "mas", a princípio, introduz uma oração subordinada adverbial adversativa; a oração principal, por sua vez, não se encontra no corpo do texto, só possível, portanto, no território das elipses; assim, o que parece opor-se aos desejos do eu lírico integra outra ordem, presente no terreno das especulações; entanto, tais considerações são, logo empós, dissolvidas pela conjunção aditiva "e", fazendo com que aquele "mas" seja absolutamente expletivo, um ornamento, assim, à estrutura sintática do texto.

A partir disso, o leitor percorre o sinuoso caminho das assonâncias, sublinhando as palavras-chave do poema: "era", em todas as variações sonoras e semânticas; e "tempo", enquanto agente provocador das reflexões; e, outrossim, alimento permanente destas. Ora, sendo do "tempo", a "hera" diz-lhe da natureza corrosiva; o tempo, sendo "era", isto é, um sistema ininterrupto da passagem das horas, o "tempo" aponta o perecível que se incrusta em todas as coisas, arando, assim, quer no passado, quer no porvir, a mesma terra, para a mesma colheita a ceifar seres e coisas, pois tudo se destina, inexoravelmente, à decomposição.

Uma reiteração
Ainda acerca do emprego de determinados recursos expressivos para o início da composição poética, o leitor encontra, em um outro poema, dessa mesma obra, não mais um advérbio, porém uma solitária vírgula - também carregada de especulações, já que, no discurso de Pedro Henrique Saraiva Leão, não existe abrigo para o excesso - os elementos por que o texto se orienta a este são absolutamente imprescindíveis: (Texto II)

Leitura do poema
Nesse poema, o sinal de pontuação - a vírgula -, implicando um único verso, sugere, no espaço, uma divisão temporal: um antes - a ser refeito pelo leitor - e um depois, configurando a experiência do eu lírico em tempo real. A presença de um "depois" indica o haver de um antes; este - infere o leitor - deve ser compreendido como o viver de uma escuridão, o exercício de uma ignorância, consoante insinua o oximoro (arrancados os olhos, o eu lírico é iniciado para a visão). Os pássaros (criam alguns povos antigos, como os célticos) são mensageiros; hão o poder mágico de comunicar-se com os deuses; nesse sentido, revelaram ao eu poemático o que, até então, não descortinara: a imagem do outro como uma promessa do - agora não tanto - desconhecido; pois, os olhos não só revelam quem olha, como, também, o que é olhado. Assim, o eu lírico, à semelhança dos aedos, cego, passa a ver o que, vidente, a ele era impossível.

Sobre o olhar
Em outro poema, Pedro Henrique Saraiva Leão perscruta o olhar enquanto curiosidade do espírito e desejo de decifração do que se estende entre o eu e o outro. Trata-se de uma composição em versos livres; porém com o emprego de rimas; - e estas surgem como indispensáveis ao andamento do ritmo: (Texto III)

A trama lírica se desenvolve a partir de um embate entre dois olhos, que, por conta do processo metonímico, representam os dois amantes. Em primeiro lugar, havemos a introdução do discurso do eu lírico, quando este se dirige aos "olhos" da amada, que, a rigor, encontram-se apenas na segunda estrofe.

O que, com insistência, diz o sujeito da anunciação? Servindo-se da estilística da repetição, bem como de malabarismos verbais, cose um intrigante jogo de armar: na passagem, "e que nos veem", (v.1), os "olhos" são um espelho numa função bijetora: imagina-se a reação do fitado sob o olhar do outro, e a deste sobre o daquele. Insinua um desdém na alusão a outros "olhos" e lábios "outros", estes "mais vermelhos" do que mesmo o "encarnado do vosso beijo"; e tal ocorreu "noutros espelhos", numa clara consciência de uma revelação, pois, dado aos "espelhos", os olhos os atravessam, e, refletida, é a imagem da própria alma.

O tema é o amor como uma aprendizagem, ditada esta por inexoráveis desencontros, conforme Platão, em "O Banquete": amar é dar ao outro o que não se tem, e esperar deste o que ele não possui; daí a blague no verso final: "estes olhos são os mesmos, meu amor", dissolver aquele incipiente desdém.

Trechos
TEXTO I
mas

a hera é do tempo, e

o tempo é era

que ara a mesma seara

do tempo de outrora

noutra hora

(p.35)

TEXTO II
como se depois

que pássaros me arrancassem os olhos

eu começasse a te enxergar

(p.42)

TEXTO III
estes olhos que vedes e que nos veem / já viram olhos como eu vejo, / viram lábios mais vermelhos / (não aqui: noutros espelhos) / do que o encarnado do vosso beijo /// estes olhos que ausentes me contemplam / agora, reconhecem, por certo, os de outrora / que vos olhavam olhavam, presentes, / vos olham da noite à aurora; /// estes olhos, ora

quedos, ora alados, / vezes ledos, outras tristes, / olhos de si amotinados, olhos / que cegastes pois tanto vistes, /// olhos que veem ermos, e / que se inundam de prazer, de dor / ,olhos que querem ver - / estes olhos, são os mesmos, meu amor (p. 67)

CARLOS AUGUSTO VIANA
EDITOR

Fonte: Diário do Nordeste

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